Bela pomba

Olha lá a pomba, que bela pomba
a bela pomba bica tudo
bica pedra, bica milho
bica lata, bica chapinha
bica bola de gude, bica chiclete
bica poça, pedra e até moeda
se assusta e revoa entre berros e pernas
mas depois volta
bicando sandálias viradas, bicando óculos
bicando frutas caídas da sacola de compra
bicando cápsulas quentes
bicando dedinhos, bicando feridas
bicando peles frias
bica de tudo essa pomba

Curto rimas gastas e confortáveis como tênis velho. Rimas naturalmente puídas. Rimas easy going. Rimas quase ímãs. Quase irmãs. Rimas parceiras. Rimas pronto-socorro. Rimas angelicais. Rimas que irão para o Céu. Rimas que a gente sabe que pode contar para o que não der e vier.

Enciclopédia das inomináveis coisas flutuantes – 1

– Quando os únicos negros de algum lugar se cumprimentam mesmo sem se conhecer.
– Quando bate aquela culpa ao se sentir bem com cheiro de gasolina.
– Quando se tenta imaginar o ponto de vista das crianças e dos bichos, não exatamente nessa ordem.
– Quando você sabe que todos querem falar algo que todos sabem que todos querem falar, mas que ninguém diz sozinho para esperar que todos possam dizer ao mesmo tempo. É como um bingo ao contrário.
– Quando bate um vontade súbita de morrer apenas para observar o luto em sua volta ou, simplesmente, parar de ficar enxergando sempre o próprio nariz.
– Quando alguém que se conhece há anos ri ou chora exatamente da mesma forma que ri ou chorava na infância.
– Quando dá uma vontade irresistível de cair no choro ou no riso apenas porque sim. Ou talvez para se lembrar da própria infância.

Todo dia

Todo dia a gente se mata violentamente. Começa logo ao amanhecer. Enfiamos as unhas em nossas órbitas oculares e penetramos com a mão na cavidade até o antebraço. De lá arrancamos uma coisa frágil que a gente aperta até sufocar. Todo dia a gente oculta esse cadáver. Todo dia a gente remove corpos insepultos de nós. Todo dia. Tudo sempre na chance de, lá na frente, a gente se parir de novo.